Fernanda Pompeu
Hoje, quando fumantes são execrados com igual virulência dedicada a assassinos, ladrões, corruptos, estupradores, recordo da dona Laurinda, cachimbadora contumaz.
Volte quarenta e sete anos e acompanhe a cena: uma passadeira de roupa, octogenária, cachimbando com gosto ao tempo que entretém com histórias os netos da patroa.
Ela contava da infância nos estertores da escravidão. Recordava da mãe sempre trabalhando. Inventava identidade para o pai que não conheceu. Também falava da vida presente no tijucano morro do Borel, Rio de Janeiro.
Naquela época, não dizíamos favela. Dona Laurinda morava na parte mais alta do morro. Bem pertinho das estrelas, ela pontuava. Nós, pivetinhos, sonhávamos em pôr uma escada no quintal de sua casa para tocarmos na lua.
Para ela, trabalhar, cachimbar e narrar eram verbos simultâneos. Passadeira milagreira engomava lençóis, vestidos, toalhas de mesa. Envoltos pela fumaça, nos entregávamos aos seus contos sempre finalizados por um provérbio. O que ela mais repetia: cada um tem uma cruz para carregar. A dela era o marido cego e paralítico. A nossa, só o futuro revelaria.
Da dona Laurinda, nunca esqueci as veias de suas mãos que semelhavam raízes de ficus, seus olhos baços de tanto ver e, principalmente, seu inexpugnável prazer de fumar.
13 de fev. de 2009
no tempo do cachimbo
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4 comentários:
Fernanda, beleza de texto, beleza de imagens. Que saudade do meu país...
Mirna
Fernanda,
Dona Laurinda me fez lembrar a prática da meditação sentada: respiração consciente, ensinamentos atuais dos antigos sábios e a magia da fumaça dos incensos.
Um beijo grande,
Caito
esse tempo só acabou pra quem quer.! ;)
Lucas Basso
Muito bom, dizem que recordar é viver, aí me lembrei do Casimiro de Abreu:
Oh, que saudades que tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Beijos saudosos dos meus oito anos.
Claudia
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