para Folha de SP de 13/01/09
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE�
HEFAISTO (Vulcano para os
romanos), Deus grego do fogo,
da forja, enfim de tudo que se
refere à Energia, foi confiada a repar
tição entre os povos dos atributos re
lativos ao seu domínio. Convidou en
tão, Hélios, o Sol, para ajudá-lo na ár
dua tarefa. ‘Neste país‘, determina
Hefaisto, ‘América do Norte, vamos
colocar os ímpios tornados, os devas
tadores ciclones (‘hurricanes‘). Neste
‘soi-disant‘ Império do Sol Nascente,
serão concentrados os Terremotos e
Vulcões, manifestações da incontida
energia nuclear contida no núcleo da
Terra. À Rússia, sua Sibéria e adjacên
cias será conferida a tortura do gelo
perene, da neve de aluvião, e suas
conseqüências, tais como, a quebra de
colheitas e a fome. No oriente, ventos
e tempestades produzirão as mais de
vastadoras enchentes. No Pacífico,
Tsunamis trarão, vez por outra, fu
nestas tragédias‘. E assim foi até que
chegou a vez do Brasil. ‘Aqui vamos
colocar os mais benevolentes poten
ciais hídricos, terras férteis abundan
tes, a punjante Amazônia, uma gene
rosa solaridade e regularidade de
chuvas, essenciais para o cultivo da
biomassa. Enfim, tudo que for neces
sário para uma produção fecunda de
Energia Renovável‘. Hélios, até então
conformado com as extravagâncias
de Hefaisto, se revoltou. ‘Por que esse
desequilíbrio, essa manifesta injusti
ça, tudo de bom em um único país, tu
do de ruim nos demais?‘ ‘Calma‘, re
plica Hefaisto. ‘Espera apenas para
ver a invasão de Ongs verdolengas,
obsessivas, paranóicas, que vão infes
tar o Brasil‘.
Não nos ocuparemos aqui daquelas
denominadas ‘Ongs do Mal‘. Dentre
elas aquelas cujo propósito único é o
usufruto de benesses financeiras e
materiais. Estas são denominadas
Ongs sanguessugas, nos compêndios
de parasitologia. Nem tão pouco con
sideraremos aquelas Ongs que sus
tentadas por Instituições e Governos
estrangeiros, defendem interesses
alienígenas e se mantêm insensíveis
às aspirações do povo brasileiro.
Concentraremo-nos, portanto, na
quelas denominadas Ongs do Bem.
Vamos também incluir neste conjun
to, bem intencionados defensores pú
blicos e autoridades do setor de meio
ambiente. E vamos começar pelo re
cente leilão de eletricidade que teve
como conseqüência a autorização e
incontornável implantação de cin
qüenta termoelétricas a combustíveis
fósseis. Argumentam estes missioná
rios verdolengos que hidroelétricas
reclamam represamento de água e
que represas são prejudiciais ao meio
ambiente, por vários motivos.
Inicialmente porque ocupam o es
paço do ambiente natural, principal
mente florestas, ameaçando espécies
naturais e o equilíbrio ecológico. Ora,
qualquer espécie que estiver restrita
exclusivamente à região de uma futu
ra represa hidroelétrica já está conde
nada à extinção devido ao espaço li
mitado. Por outro lado, a questão de
espaço vital é ridícula, pois se assim
fosse, teríamos que secar os lagos na
turais. A maior diferença entre lagos
naturais e represas é que os primeiros
foram feitos pela mãe Natureza (Jeo
vá para alguns), enquanto as represas
resultam da ação do homem sobre a
Natureza. No fundo, uma grande par
cela da aversão dos chamados am
bientalistas, por represas é de origem
religiosa.
É claro que a introdução de uma hi
droelétrica mesmo que seja ela de ‘fio
d’água‘ (em que a água represada é
minimizada em troca de perdas de
potência e de energia), provoca mu
danças no meio ambiente, que aliás
com freqüência são desejáveis, pois
permitem controle de enchentes pre
judiciais ao homem e ao ambiente em
geral. Mas outras vezes podem de fato
ter conseqüências negativas. Todavia,
os danos causados por termoelétricas
são no médio e no longo prazo, infini
tamente maiores, devido ao aumento
do efeito estufa e com conseqüências
globais, do que o que ocorre local
mente como conseqüência da im
plantação de uma hidroelétrica.
Aparentemente os oponentes à hi
droelétricas não percebem que a cada
vitória jurídica que obtêm, uma série
de termoelétricas será construída.
Outras destas Ongs do Bem con
centram seus ataques no álcool com
bustível. ‘É preciso salvar o cerrado‘,
dizem, ‘é preciso salvar a caatinga, é
preciso salvar as dunas, os pântanos,
o mangue, o deserto‘. Enfim, não se
pode tocar em nada, nem nos 200 mi
lhões de hectares de pastos. Ou seja, o
Brasil é um museu intocável. Este é o
dogma divino. Não há espaço para a
cana. Temos que nos conformar com
os fósseis poluentes, aniquiladores.
Temos que nos conformar com a mi
séria do brasileiro.
Os antolhos dessa obsessão, ironi
camente, fazem com que vejam as ár
vores e ignorem a floresta. Ou seja,
salvam meia dúzia de espécimes lo
cais (não de espécies), mas compro
metem a humanidade e mesmo a vida
sobre a Terra. Que Deus nos livre das
Ongs do Bem, que nós nos ocupare
mos das Ongs do Mal.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 77, físico, é pro
fessor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas), presidente do Conselho de Administração da
ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Sín
crotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.
16 de jan. de 2009
ONGs do bem, ONGs do mal
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