16 de jan. de 2009

ONGs do bem, ONGs do mal

para Folha de SP de 13/01/09



ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE�

HEFAISTO (Vulcano para os
romanos), Deus grego do fogo,
da forja, enfim de tudo que se
refere à Energia, foi confiada a repar­
tição entre os povos dos atributos re­
lativos ao seu domínio. Convidou en­
tão, Hélios, o Sol, para ajudá-lo na ár­
dua tarefa. ‘Neste país‘, determina
Hefaisto, ‘América do Norte, vamos
colocar os ímpios tornados, os devas­
tadores ciclones (‘hurricanes‘). Neste
‘soi-disant‘ Império do Sol Nascente,
serão concentrados os Terremotos e
Vulcões, manifestações da incontida
energia nuclear contida no núcleo da
Terra. À Rússia, sua Sibéria e adjacên­
cias será conferida a tortura do gelo
perene, da neve de aluvião, e suas
conseqüências, tais como, a quebra de
colheitas e a fome. No oriente, ventos
e tempestades produzirão as mais de­
vastadoras enchentes. No Pacífico,
Tsunamis trarão, vez por outra, fu­
nestas tragédias‘. E assim foi até que
chegou a vez do Brasil. ‘Aqui vamos
colocar os mais benevolentes poten­
ciais hídricos, terras férteis abundan­
tes, a punjante Amazônia, uma gene­
rosa solaridade e regularidade de
chuvas, essenciais para o cultivo da
biomassa. Enfim, tudo que for neces­
sário para uma produção fecunda de
Energia Renovável‘. Hélios, até então
conformado com as extravagâncias
de Hefaisto, se revoltou. ‘Por que esse
desequilíbrio, essa manifesta injusti­
ça, tudo de bom em um único país, tu­
do de ruim nos demais?‘ ‘Calma‘, re­
plica Hefaisto. ‘Espera apenas para
ver a invasão de Ongs verdolengas,
obsessivas, paranóicas, que vão infes­
tar o Brasil‘.

Não nos ocuparemos aqui daquelas
denominadas ‘Ongs do Mal‘. Dentre
elas aquelas cujo propósito único é o
usufruto de benesses financeiras e
materiais. Estas são denominadas
Ongs sanguessugas, nos compêndios
de parasitologia. Nem tão pouco con­
sideraremos aquelas Ongs que sus­
tentadas por Instituições e Governos
estrangeiros, defendem interesses
alienígenas e se mantêm insensíveis
às aspirações do povo brasileiro.

Concentraremo-nos, portanto, na­
quelas denominadas Ongs do Bem.
Vamos também incluir neste conjun­
to, bem intencionados defensores pú­
blicos e autoridades do setor de meio
ambiente. E vamos começar pelo re­
cente leilão de eletricidade que teve
como conseqüência a autorização e
incontornável implantação de cin­
qüenta termoelétricas a combustíveis
fósseis. Argumentam estes missioná­
rios verdolengos que hidroelétricas
reclamam represamento de água e
que represas são prejudiciais ao meio
ambiente, por vários motivos.

Inicialmente porque ocupam o es­
paço do ambiente natural, principal­
mente florestas, ameaçando espécies
naturais e o equilíbrio ecológico. Ora,
qualquer espécie que estiver restrita
exclusivamente à região de uma futu­
ra represa hidroelétrica já está conde­
nada à extinção devido ao espaço li­
mitado. Por outro lado, a questão de
espaço vital é ridícula, pois se assim
fosse, teríamos que secar os lagos na­
turais. A maior diferença entre lagos
naturais e represas é que os primeiros
foram feitos pela mãe Natureza (Jeo­
vá para alguns), enquanto as represas
resultam da ação do homem sobre a
Natureza. No fundo, uma grande par­
cela da aversão dos chamados am­
bientalistas, por represas é de origem
religiosa.

É claro que a introdução de uma hi­
droelétrica mesmo que seja ela de ‘fio
d’água‘ (em que a água represada é
minimizada em troca de perdas de
potência e de energia), provoca mu­
danças no meio ambiente, que aliás
com freqüência são desejáveis, pois
permitem controle de enchentes pre­
judiciais ao homem e ao ambiente em
geral. Mas outras vezes podem de fato
ter conseqüências negativas. Todavia,
os danos causados por termoelétricas
são no médio e no longo prazo, infini­
tamente maiores, devido ao aumento
do efeito estufa e com conseqüências
globais, do que o que ocorre local­
mente como conseqüência da im­
plantação de uma hidroelétrica.

Aparentemente os oponentes à hi­
droelétricas não percebem que a cada
vitória jurídica que obtêm, uma série
de termoelétricas será construída.

Outras destas Ongs do Bem con­
centram seus ataques no álcool com­
bustível. ‘É preciso salvar o cerrado‘,
dizem, ‘é preciso salvar a caatinga, é
preciso salvar as dunas, os pântanos,
o mangue, o deserto‘. Enfim, não se
pode tocar em nada, nem nos 200 mi­
lhões de hectares de pastos. Ou seja, o
Brasil é um museu intocável. Este é o
dogma divino. Não há espaço para a
cana. Temos que nos conformar com
os fósseis poluentes, aniquiladores.
Temos que nos conformar com a mi­
séria do brasileiro.

Os antolhos dessa obsessão, ironi­
camente, fazem com que vejam as ár­
vores e ignorem a floresta. Ou seja,
salvam meia dúzia de espécimes lo­
cais (não de espécies), mas compro­
metem a humanidade e mesmo a vida
sobre a Terra. Que Deus nos livre das
Ongs do Bem, que nós nos ocupare­
mos das Ongs do Mal.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE, 77, físico, é pro­
fessor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas), presidente do Conselho de Administração da
ABTLuS (Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Sín­
crotron) e membro do Conselho Editorial da Folha.

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