11 de dez. de 2008

Criacionismo em aula de ciências

Folha de S. Paulo 06/12/08



CHARBEL NIÑO EL-HANI

O criacionismo ser ensi­
nado em aulas de ciências? Em
minha visão, a resposta a esta
questão deve ser ’Não’ - mas com im­
portantes qualificações, que discuti­
rei abaixo. Antes de mais nada, é pre­
ciso dizer que este é um debate inte­
ressante, no qual devemos exprimir
nossas posições com clareza, evitan­
do a todo custo usar nossos argumen­
tos apenas em favor do proselitismo.
Mais do que apenas tomar partido, é
preciso esclarecer o que está em jogo.
O espaço é curto, mas vejamos alguns
pontos. Em artigo recentemente pu­
blicado no periódico internacional
Cultural Studies of Science Educa­
tion, em colaboração com Eduardo
Mortimer (UFMG), defendi a posição
de que, de um lado, professores de
ciências sempre devem ter em conta a
diversidade das visões do mundo dos
estudantes em suas salas de aula. Isso
significa que deve haver, sim, espaço
para a discussão de diferentes pers­
pectivas sobre fenômenos que a ciên­
cia explica, incluindo o criacionismo,
desde que representado na sala, e não
somente na perspectiva cristã, mas
em todas as perspectivas presentes
entre os estudantes. Mas, de outro la­
do, os professores nunca devem per­
der de vista que o objetivo do ensino
de ciências é, como deveria ser óbvio,
ensinar o conhecimento científico.
Assim, é necessário, sim, que os pro­
fessores estimulem os estudantes pa­
ra que compreendam as idéias cientí­
ficas - e tal como elas se apresentam
no conhecimento científico atual­
mente aceito. Seria certamente um
rompimento do contrato didático en­
tre professores, alunos, pais, adminis­
tradores, se, nas aulas de ciências, não
se tivesse como objetivo ensinar ciên­
cias, mas sim idéias oriundas de dife­
rentes tradições culturais. Nunca é
demais repetir: professores de ciên­
cias estão ali para ensinar ciências!
Por isso, minha resposta à questão
inicial é ’Não’. Mas notem a qualifica­
ção importante: isso não significa não
dar espaço a vozes discordantes do
conhecimento científico. Antes pelo
contrário, o professor de ciências de­
ve explorar essas vozes discordantes
para discutir as variadas maneiras co­
mo os seres humanos compreendem
e explicam o mundo, e, mais, a impor­
tância de se distinguir entre diversos
discursos humanos, fundados em
pressupostos distintos sobre o que
constitui o mundo (pressupostos on­
tológicos) e sobre o que constitui co­
nhecimento válido (pressupostos
epistemológicos). O discurso científi­
co é, em termos epistemológicos, de
caráter empírico, no sentido de que as
afirmações que a ciência faz sobre o
mundo devem ser sujeitas ao crivo da
experiência, devem ser testadas con­
tra o mundo empírico. Esse caráter
empírico implica, por sua vez, que,
em sua ontologia, o discurso científi­
co assume um naturalismo metodo­
lógico. Na medida em que os sistemas
naturais são os sistemas sobre os
quais podemos coletar dados empíri­
cos, somente estes figuram no discur­
so das ciências. É importante diferen­
ciar essa posição de um naturalismo
metafísico: não se trata de dizer que
entidades sobrenaturais (deuses, es­
píritos etc.) não existem (esta é uma
crença como qualquer outra e, since­
ramente, não é produtivo debater
crenças tão fundamentais). Trata-se,
antes, de dizer que estas entidades
não figuram no discurso das ciências,
porque afirmações que as empregam
não podem ser testadas empirica­
mente. Este discurso naturalista é le­
gitimo! Isso também parece óbvio,
mas é preciso destacar que, quando se
discute pluralismo e respeito à diver­
sidade, por vezes se perde de vista que
também o discurso científico deve ser
respeitado, deve ser reconhecido co­
mo legítimo! E, ademais, reunimos
nossas crianças e adolescentes em sa­
las de aula de ciências para aprender
este discurso científico sobre o mun­
do e seria um desrespeito aos estu­
dantes tanto negar-lhes a voz, quando
discordarem desse discurso, quanto
ter como objetivo ensinar-lhes idéias
que não são científicas, como, por
exemplo, idéias criacionistas. Esta
posição me parece um bom caminho
intermediário entre privar os sujeitos
em sala de aula de exprimir suas con­
cepções sobre o mundo e simples­
mente querer ensinar o que não é
ciência como se o fosse.

�CHARBEL NIÑO EL-HANI�, bacharel em ciências biológi­
cas, mestre e doutor em educação, é professor do Institu­
to de Biologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e
do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e
História das Ciências da UFBA/UEFS (Universidade Esta­
dual de Feira de Santana). É bolsista de produtividade em
pesquisa 1-D do CNPq.

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