Folha de S. Paulo 06/12/08
CHARBEL NIÑO EL-HANI
O criacionismo ser ensi
nado em aulas de ciências? Em
minha visão, a resposta a esta
questão deve ser ’Não’ - mas com im
portantes qualificações, que discuti
rei abaixo. Antes de mais nada, é pre
ciso dizer que este é um debate inte
ressante, no qual devemos exprimir
nossas posições com clareza, evitan
do a todo custo usar nossos argumen
tos apenas em favor do proselitismo.
Mais do que apenas tomar partido, é
preciso esclarecer o que está em jogo.
O espaço é curto, mas vejamos alguns
pontos. Em artigo recentemente pu
blicado no periódico internacional
Cultural Studies of Science Educa
tion, em colaboração com Eduardo
Mortimer (UFMG), defendi a posição
de que, de um lado, professores de
ciências sempre devem ter em conta a
diversidade das visões do mundo dos
estudantes em suas salas de aula. Isso
significa que deve haver, sim, espaço
para a discussão de diferentes pers
pectivas sobre fenômenos que a ciên
cia explica, incluindo o criacionismo,
desde que representado na sala, e não
somente na perspectiva cristã, mas
em todas as perspectivas presentes
entre os estudantes. Mas, de outro la
do, os professores nunca devem per
der de vista que o objetivo do ensino
de ciências é, como deveria ser óbvio,
ensinar o conhecimento científico.
Assim, é necessário, sim, que os pro
fessores estimulem os estudantes pa
ra que compreendam as idéias cientí
ficas - e tal como elas se apresentam
no conhecimento científico atual
mente aceito. Seria certamente um
rompimento do contrato didático en
tre professores, alunos, pais, adminis
tradores, se, nas aulas de ciências, não
se tivesse como objetivo ensinar ciên
cias, mas sim idéias oriundas de dife
rentes tradições culturais. Nunca é
demais repetir: professores de ciên
cias estão ali para ensinar ciências!
Por isso, minha resposta à questão
inicial é ’Não’. Mas notem a qualifica
ção importante: isso não significa não
dar espaço a vozes discordantes do
conhecimento científico. Antes pelo
contrário, o professor de ciências de
ve explorar essas vozes discordantes
para discutir as variadas maneiras co
mo os seres humanos compreendem
e explicam o mundo, e, mais, a impor
tância de se distinguir entre diversos
discursos humanos, fundados em
pressupostos distintos sobre o que
constitui o mundo (pressupostos on
tológicos) e sobre o que constitui co
nhecimento válido (pressupostos
epistemológicos). O discurso científi
co é, em termos epistemológicos, de
caráter empírico, no sentido de que as
afirmações que a ciência faz sobre o
mundo devem ser sujeitas ao crivo da
experiência, devem ser testadas con
tra o mundo empírico. Esse caráter
empírico implica, por sua vez, que,
em sua ontologia, o discurso científi
co assume um naturalismo metodo
lógico. Na medida em que os sistemas
naturais são os sistemas sobre os
quais podemos coletar dados empíri
cos, somente estes figuram no discur
so das ciências. É importante diferen
ciar essa posição de um naturalismo
metafísico: não se trata de dizer que
entidades sobrenaturais (deuses, es
píritos etc.) não existem (esta é uma
crença como qualquer outra e, since
ramente, não é produtivo debater
crenças tão fundamentais). Trata-se,
antes, de dizer que estas entidades
não figuram no discurso das ciências,
porque afirmações que as empregam
não podem ser testadas empirica
mente. Este discurso naturalista é le
gitimo! Isso também parece óbvio,
mas é preciso destacar que, quando se
discute pluralismo e respeito à diver
sidade, por vezes se perde de vista que
também o discurso científico deve ser
respeitado, deve ser reconhecido co
mo legítimo! E, ademais, reunimos
nossas crianças e adolescentes em sa
las de aula de ciências para aprender
este discurso científico sobre o mun
do e seria um desrespeito aos estu
dantes tanto negar-lhes a voz, quando
discordarem desse discurso, quanto
ter como objetivo ensinar-lhes idéias
que não são científicas, como, por
exemplo, idéias criacionistas. Esta
posição me parece um bom caminho
intermediário entre privar os sujeitos
em sala de aula de exprimir suas con
cepções sobre o mundo e simples
mente querer ensinar o que não é
ciência como se o fosse.
�CHARBEL NIÑO EL-HANI�, bacharel em ciências biológi
cas, mestre e doutor em educação, é professor do Institu
to de Biologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e
do Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e
História das Ciências da UFBA/UEFS (Universidade Esta
dual de Feira de Santana). É bolsista de produtividade em
pesquisa 1-D do CNPq.
11 de dez. de 2008
Criacionismo em aula de ciências
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