8 de fev. de 2010

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Fernanda Pompeu


Enchentes, todos os anos, enchem a paciência. São sempre idênticas imagens: casas inundadas, ruas intransitáveis, árvores derrubadas, bueiros entupidos, pessoas mortas. Como alguém pode morrer, no século XXI, por conta de uma chuva forte?
Em 1966, no Rio de Janeiro, houve uma inundação monumental. Nós morávamos em frente ao rio Maracanã, na Tijuca. O rio transbordou. Em segundos, a água entrou na casa. Encharcou os livros que tinham sido do meu avô Walter. Entre eles, um do Graciliano Ramos autografado.
Meu avô Walter foi um tenentista. Em 1935, por participar da Aliança Nacional Libertadora (ANL), foi preso pelo ditador Getúlio Vargas. Ele e o autor de Vidas Secas se conheceram na prisão. Não ficaram amigos, mas se respeitaram.
Um ano após cumprir pena, meu avô morreu. Tempos depois, minha avó se casou com um judeu chamado Júlio. No dia da enchente, esse avô postiço e querido estava em casa.
Ao observar a excitação das crianças, contrastando com o pânico dos adultos, vovô Júlio contou que na sua aldeia natal, na então Tchecoslováquia, as crianças também se maravilhavam com as fogueiras acendidas pelos nazistas.
As crianças judias não sabiam o significado exato de um progon. Nós não sabíamos a extensão catastrófica de uma enchente. Ver o mundo com olhos infantes é uma festa.

8 comentários:

Unknown disse...

Fernanda, que alegria, voce e o PI voltaram! ótima notícia neste ano encharcado que estamos.
Fico imaginando quantas historias para serem relatadas nestes quase 50 dias de chuvas! bairros com mais de 30 dias com água!!
cadê os reportes do cotidiano,??
saudações e espero que permaneçam on line
vera soares

Fernanda Pompeu disse...

Querida Vera,
Com certeza muitas histórias estão rolando sob as águas. Faltam narradores do cotidiano. É curioso: temos tantas ferramentas, mas onde se esconderam os contadores?

Cris disse...

que bom que está de volta, com tanta coisa boa pra contar.

Claudia disse...

Que bom você está de volta.Com olhos atentos no cotidiano e relembrando nossas histórias.
Cláudia

Anônimo disse...

Oi Fernanda,
acabo de abrir a internet e dou de cara com essa crônica sobre as águas/enchentes/recordações e esse seu olhar tão humano sobre as misérias do nosso planetinha. Grande beijo,
Sílvia Artacho

Anônimo disse...

Fê,
Você é definitivamente grande nesses textos curtos
Que boa surpresa o retorno da Ong PI

WM

Anônimo disse...

Fernanda,
Que saudade estava das histórias do baú sem fundo. Delicioso reencontrá-las.
Silvana Afram

Myriam Andrea disse...

Perdas e mais perdas. Anos a fio de péssimas administrações e muita desonestidade! Dá uma dor no peito. Quem vive pessoalmente a tragédia, perde também a criança que habita o adulto e que deveria junto com ele morrer. "Oh pedaço de mim, oh metade arrancada de mim...". Beijos. Myriam Andrea