18 de fev. de 2008

real e imaginario 2


É PRECISO OLHAR A VIDA INTEIRA COM OLHOS DE CRIANÇA

Henri Matisse


Criar é próprio do artista; onde não há criação, não existe arte. Enganar-se-ia quem atribuísse este poder criador a um dom inato. Em matéria de arte, o criador autêntico não é somente um ser dotado, é um homem que soube ordenar, visando um determinado fim, todo um conjunto de atividades do qual resulta a obra de arte. Assim, para o artista, a criação começa com a visão. Ver, já é um ato criador e que exige certo esforço. Tudo o que vemos na vida cotidiana, sofre, mais ou menos, a deformação engendrada pelos hábitos adquiridos, e o fato é talvez mais sensível numa época como a nossa, onde cinema, publicidade, periódicos, impõem diariamente um fluxo de imagens preconcebidas, que são um pouco na ordem da visão, o que é preconceito na ordem da inteligência.

O esforço necessário para libertar-nos exige uma espécie de coragem; e essa coragem é indispensável ao artista que deve ver todas as coisas como se as visse pela primeira vez; é preciso ver a vida inteira como no tempo em que se era criança, pois a perda desta condição nos priva da possibilidade de uma maneira de expressão original, isto é, pessoal.

Tomando um exemplo, creio que nada é mais difícil para um verdadeiro pintor do que pintar uma rosa, porque para o fazer é preciso antes de mais nada esquecer todas as rosas que já foram pintadas. Aos que vinham me ver, em Vence, eu costumava fazer esta pergunta: “Vocês viram os acantos sobre a orla que margeia a estrada?“. Ninguém os havia visto; todos teriam reconhecido a folha de acanto sobre um capitel coríntio, porém a lembrança do capitel não permitia que se visse o acanto no estado natural.

É um primeiro passo para a criação ver-se cada coisa em sua verdade e isto pressupõe um esforço contínuo.

Criar é expressar o que se tem dentro de si. Todo esforço autêntico de criação é interior. Ainda assim é preciso cultivar essa sensação, com o auxílio dos elementos extraídos do mundo exterior. Aqui intervém o trabalho pelo qual o artista incorpora e assimila gradativamente o mundo exterior, até que e objeto desejado se torne parte dele mesmo, até que o tenha dentro de si e possa projetá-lo na tela como sua própria criação.

Quando pinto um retrato, tomo e retomo o meu assunto a cada vez é novo o retrato que faço; não o mesmo corrigido, mas outro retrato que recomeço; e cada vez é um ser diferente que eu extraio da mesma personalidade. Aconteceu-me muitas vezes, afim de esgotar de maneira mais completa meu estudo, inspirar-me em fotografias da mesma pessoa em idades diferentes; o retrato definitivo poderá representá-lo mais jovem, ou com aspecto diferente do que tinha quando pousava, porque este assunto me pareceu mais verdadeiro, mais revelador da sua personalidade real. A obra de arte é assim o coroamento de um longo trabalho de elaboração. O artista absorve tudo o que à sua volta for capaz de alimentar-lhe a visão interior, diretamente, quando o objeto que desenha deve figurar na sua composição, ou então, por analogia. Coloca-se assim em estado de criar. Enriquece-se interiormente de todas as formas de que possa tornar-se senhor e que ordenará algum dia conforme um ritmo novo. No expressar esse ritmo, a atividade do artista será realmente criadora. Para conseguí-lo, preferirá a seleção ao acúmulo de detalhes. Deverá escolher, por exemplo, no desenho, dentre todas as combinações possíveis, o traço que se revelar plenamente expressivo, como que portador de vida, procurar as equivalências pelas quais a natureza se transpõe para o âmbito próprio da arte. Na “Nature morte au magnólia”, representei em vermelho uma mesa de mármore verde; em outra ocasião precisei de uma mancha escura para evocar a cintilação do sol sobre o mar; essas transposições não foram absolutamente o efeito do acaso ou da fantasia, mas sim o coroamento de uma série de pesquisas, em conseqüência das quais esses matizes me pareceram necessários, tendo em vista suas relações com o resto da composição, a fim de comunicar a impressão desejada.

As cores, os traços, são forças, e no jogo destas forças, no seu equilíbrio, reside o segredo da criação. Na capela de Vence , que é o coroamento das minhas pesquisas anteriores, tentei realizar esse equilíbrio de forças; o azul, o verde, o amarelo dos vitrais, compõem no interior uma luz que não é propriamente nenhuma das cores empregadas, mas sim o produto vivo de sua harmonia, de suas relações recíprocas; essa cor-luminosidade deveria projetar-se sobre o campo branco, cercado de preto, do muro que fica fronteiro aos vitrais e no qual há linhas propositadamente muito espaçadas. O contraste permite-me dar à luminosidade todo o seu valor vitral, fazendo dela o elemento essencial, aquele que dê o colorido, aqueça, anime, no sentido próprio, este conjunto qual importa conferir uma impressão de espaço ilimitado a despeito de suas dimensões reduzidas.

Em toda a capela não há uma só linha, um pormenor, que não concorra para essa impressão. Parece-me que, nesse sentido é que se pode dizer que a arte imita a natureza: pelo caráter de vida que um trabalho criador confere à obra de arte. Então, a obra aparecerá igualmente fecunda e dotada desse mesmo frêmito interior, dessa mesma beleza resplandecente que as obras da natureza possuem. É preciso um amor muito grande, capaz de inspirar e de sustentar esse esforço contínuo em direção à verdade, essa generosidade conjunta e esse despojamento profundo que envolve a gênese de toda obra de arte.

Mas o amor não está na origem de toda criação?

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