23 de set. de 2009

Herrar






Fernanda Pompeu

Essa história foi vivida em 1979, na seção de revisão da Folha de S. Paulo. Era época em que os jornais ainda levavam a sério crases, hifens, concordâncias nominal e verbal.
A salinha dos revisores de anúncios, mal-ajambrada, ficava grudadinha no departamento de past-up - onde sob o forte cheiro de benzina, profissionais, com estiletes em punho, montavam as páginas do jornal.
Nós, os revisores, labutávamos em dupla. Um sentado na frente do outro. O primeiro lia em voz alta, enquanto o segundo acompanhava as letrinhas, as pontuações, os acentos. Tínhamos um código sonoro: uma batida na mesa significava vírgula; duas, ponto final.
Minha parceira era a Carminha Fernandes, hoje hábil editora. Foi quem batalhou para eu ser admitida na Folha. Foi também quem me apresentou ao Bar das Putas, o atual aburguesado Sujinho, na Consolação com Maceió. Lá, pelas 23h, jantávamos um virado à paulista.
O trabalho era intenso e responsável. Qualquer mancada em um anúncio, obrigava o jornal a publicá-lo gratuitamente na edição seguinte. Fazíamos tudo para acertar. Afinal, todo ser humano pode se equivocar, com exceção de cirurgiões, pilotos de avião e revisores.
Momento de concentração máxima era para o obituário. Uma vez, um cochilo tornou-se trágico. O revisor trocou a palavra pesar por prazer. A frase foi publicada: a família tem o prazer de comunicar o falecimento...
Carminha e eu conferíamos em voz alta: cruz, estrela. Repetíamos e repetíamos: cruz, estrela. Se o anúncio fúnebre de um Isaac saísse com a Cruz de Cristo no cabeçalho e o de um João da Silva com a Estrela de David, dava demissão na certa.
Por justa causa.

4 comentários:

Sara Eduarda disse...

Que saudades dessa profissão!! rs Boas lembranças dos jornais traçado a régua de paicas, com olhos atentos, mãos ágeis e leituras coletivas.
Por causa do trabalho de revisão em muitas páginas de jornais, hje. só leio meus textos de Filosofia em voz alta. Como se alguém estivesse pronto pra bater uma ou duas vezes na mesa, lembrando-me do lugar da vírgula...

cida disse...

Pois eu não tenho saudade da cola de benzina. Já o estilete continua sendo parceiro. Fê, um beijo. cida

Anônimo disse...

Só tendo 23 anos para comer um virado à paulista (com crase e tudo),
uma batidinha, às 23 horas, e conseguir dormir naquela noite.
Melhor ainda, e não ganhar nem cruzinha, nem estrelinha na edição do dia seguinte.
Beijo. Myriam.

Sílvia Artacho disse...

Adorei!
Sou leitora fervorosa de obituários.
Hábito regular desde meus 13 anos.
Aliás, herdado de pai e mãe.
Uma pena que hoje usem revisores eletrônicos que são responsáveis pelas barbaridades publicadas.
Beijo, Sílvia