Fernanda Pompeu
Cosme e Damião tinham dez anos. Eram filhos da Hilda, cozinheira da família. Gêmeos nascidos e criados em Nova Iguaçu, capital informal da Baixada Fluminense. Muitas vezes, Hilda, por não ter com quem deixá-los, vinha com eles para a casa da Tijuca.
Sentia inveja do trajeto deles: o trem de subúrbio que parava na então majestosa Central do Brasil. Na minha imaginação, eles eram as pessoas mais livres do meu minguado círculo de relacionamento.
Eu e meus irmãos tínhamos os dois como parceiros de jogos e brincadeiras. Numa manhã de 40 graus, Damião e eu entramos debaixo do chuveiro. Pelados e mais ou menos inocentes, fomos flagrados por Hilda. Levamos um tremenda bronca e começamos a desconfiar que banho era coisa errada.
Com eles aprendemos a camaradagem infantil e a cumplicidade entre amigos. Juntos delirávamos ao assistir ao Nacional Kid – herói japonês do tempo da televisão preto e branco e chuviscada. Os Incas Venusianos eram os inimigos de Kid e todos nós.
Damião e Cosme não iam à escola. Eram só dois meninos negros, filhos da empregada, no Rio de Janeiro dos anos 1960. Nas projeções de futuro das crianças brancas: uma irmã queria ser professora; eu, escritora; outro, não me lembro mais o quê.
Nesse assunto, os gêmeos ficavam em silêncio. Talvez Cosme intuísse que ira, como seu tio peão, carregar tijolos na construção civil. Damião, apesar de sonhar em ser Nacional Kid, entendia que sem somar uma letra à outra não teria chance de escolher.
Por que, diabos, lembro tudo isso? O Brasil melhorou. Passaram-se mais de quarenta e cinco anos. Não faço ideia do que aconteceu com os gêmeos. Nem com a Hilda. Qual o motivo de contar essa pequena história? Remorso.
24 de ago. de 2009
dois irmãos
Marcadores:
baú sem fundo,
Brasil,
crônica
Assinar:
Postar comentários (Atom)
7 comentários:
Dona Baú, gostei muito da sua história. Quanto a ter algo de errado
com o banho, não é uma reflexão sem "fundo". Explico: um dos sintomas
de sadismo e outra psicopatias é mania de limpeza. A pessoa se limpa,
se lava, se esfrega e continua se sentindo suja. Isso por que é (não está)
suja na mente, no psiquismo.
Beijo.
Madame Myr.
quanta Hilda na sua vida, fe querida!!!! gostei da história
beijo,
ma
Que lindo isto Fernanda.
Se for remorso, será cristão?
Porque de fato esta situação foge do controle dos que estão bem ou mal intencionados...
Cosme e Damião, como você chamou, terão talvez lembranças tão agradáveis quanto as suas daquele tempo de menino e ,isto talvez possa ter dado a chance a eles, não de ter uma vida material mais digna,isto eu não faço idéia, mas de acreditar que no mundo há pessoas muito especiais e também, uma infância boa de se lembrar, isto pode ter feito toda a diferença, porque o ser humano pode ser muito maior do que sua condição social, voce não acha?
Um beijo
Lindo, Fernanda!
Triste de doer,
beijo,
Silvia
Pois é! Onde andarão?
Amarauri, Cosme, Damião e Luizinho.
Não sabemos nem mesmo os seus sobrenomes, o que sabemos é que são todos filhos da mãe Hilda e de pais desconhecidos.
Beijos,
Leitoras e leitores nomeados e anônimos, escrever é dar um recado. Ter esse recado lido é uma felicidade.
Postar um comentário